Capítulo
1
Criado
pela Violência
Cidade de Thombstone – 503... 501 habitantes – 1873
Um estrondo acompanhado pelo estilhaçar de vidros se
quebrando acordou o menino Jack de supetão. Deitado numa cama dura forrada de
palha, no minúsculo quarto com paredes de madeira velha, a criança de dez anos
olhou assustada para uma mulher com pouco mais de quarenta anos agachada
debaixo de sua janela, com vista para o quintal. Ela usava um rifle winchester
nas mãos.
- Mãe! – reclamou Jack.
Reclamou como reclamava quase todos os dias, quando
situações como aquela aconteciam desde que ele se entendia como gente.
- Diiia filho. – cumprimentou Jane com um sorriso, que
lhe faltava dois dentes.
Outra bala entrou pela janela e furou a bandeira dos
Estados Confederados pendurada na parede oposta. A mulher levantou-se e
disparou três vezes como resposta.
- Morre seus bandos de esterco de cavalo manco! –
gritava ela. – Desculpa te acordar meu filho, mas os diachos dos Rojos
começaram cedo hoje.
- Rojos?! – perguntou Jack sentando na cama alheio aos
projéteis penetrando pela janela e pelas frágeis paredes do quarto. - Não eram
os Braxter, que vinham causando problema?
-Vish! Naaada. Os Braxters sossegaram o facho depois
que os Rojos empacotaram o filho mais véio deles. Agora a batata assô foi com
os Rojos.
A guerra entre as três famílias: Rojos, Braxters e
Davis já duravam dez anos desde o fim da Guerra de Secessão que dividiu o país
ao meio. A maioria dos homens daquelas famílias havia lutado na guerra ao lado
dos Confederados, mas agora eram inimigos mortais. O motivo pelo qual se
odiavam, ou o que iniciou aquela pendenga, ninguém mais sabia, mas não
importava.
A violência era cotidiana na pequena Thombstone, com
cerca de quinhentos habitantes variando para mais ou para menos dependendo do
momento e do estado etílico dos atiradores. Quando não eram as três famílias se
matando, a violência era aquela típica de uma região de fronteira, em um país
que se expandia rápido para o oeste. Os Fora-da-lei na estrada, confrontos com
índios e todo tipo de confusão eram naturais naquelas terras, além da
tradicional guerra entre famílias. Melhor que isso só uma boa briga de bar.
Jack bocejou sonolento enquanto esticava os braços
numa boa espreguiçada aparentemente dicotômica com o cheiro de pólvora no ar,
os cartuchos e destroços espalhados pelo chão e o som de tiros distantes,
prontamente respondidos por Jane Davis rindo e xingando o tempo todo. Isso
poderia realmente parecer estranho há um observador estranho, mas, por essas
bandas, nada é mais tradicional.
O garoto cruzou a porta do quarto que dava acesso há
uma sala não muito maior do que o cômodo anterior. Nela havia pratos
empoeirados enfeitando a parede, uma mesa com restos de comida, que pareciam
estar ali há pelo menos três dias, um sofá com estofamento rasgado, onde um
cachorro vira-lata velho dormia profundamente. Ao lado do sofá, numa cadeira de
balanço, um homem com mais de sessenta anos, exibindo uma longa barba branca e
pontuda, acompanhava o sono do cão roncando alto, apesar do cachimbo babado na
boca.
Um imenso gambá passou correndo por entre as pernas de
Jack, ao mesmo tempo em que uma senhora gorda saía pela porta lateral que
ligava a sala à cozinha. Ela carregava uma machadinha enferrujada e esbravejava
agitando os braços.
- Pega o bicho que ta fugindo nosso rango!
Jack se abaixou, mas o animal foi muito mais rápido do
que ele e passou por entre suas pernas, correu em direção à porta aberta e
antes de ganhar a liberdade derrubou a escarradeira de metal que jazia cheia
até a boca ao lado da cadeira de balanço do vô Davis.
- Mas que catiça! – gritou a vó Davis.
- Vó – chamou Jack ignorando o amaldiçoar do animal
sortudo. – Onde está o pai?
- Tá no quintal trocando bala com os vizinhos lá de
cima.
Jack cruzou a sala, levemente abaixado, já que
ocasionalmente um projétil atravessava o cômodo alojando-se na parede e criando
mais um buraco da coleção de marcas de bala que existiam na parede. O menino
olhou pela porta e viu a figura inconfundível de seu pai segurando em uma das
mãos o revólver 38 de tambor e na outra, uma garrafa de algum destilado
fabricado no quintal dos fundos, cujo rótulo de cortiça exibia três letras “X”.
Sam Davis era o nome do homem que ria, bebia e atirava
completamente exposto à própria sorte. Ostentava um grosso bigode que se
juntava à barba deixando o queixo nu. Na cabeça tinha um chapéu de cowboy, que
Jack nunca o vira sem, e nos pés inseparáveis botas de couro tão velho que o pé
esquerdo expunha um buraco, deixando o dedão feio de Sam à mostra.
O pai de Jack estava embriagado, como o deserto é
quente e o cacto tem espinhos. O garoto não sabia se Sam havia bebido a noite
toda sem dormir, ou apenas começara logo pela manhã, mas pouca diferença isso
fazia. Jack o preferia assim, pois quando estava sóbrio, sua violência
tornava-se mais eficaz, além de descontar suas frustrações na própria família.
- Paaai! – chamou Jack com a entonação característica
da região sul.
O homem se virou com os braços abertos, ainda
gargalhando. Então uma bala quebrou a garrafa em sua mão, passou zunindo pelo
ouvido de Jack e entrou na casa arrancando o cachimbo da boca do vô Davis que
só então acordou gritando:
- Os yankees estão atacando! Mata! Mata! Ninguém vai
libertar meus escravos!
- Do que cê ta falando fiote de cruz credo! – era a vó
Davis. – Você nunca conseguiu ter um negrinho sequer!
- Pode ser! – continuou a gritar o velho indignado. –
Mas na minha época eu pelo menos podia ter um! – e começou a cantar – Deus
salve o sul! Seus lares e altares! Deus Salve o sul!
Ao som de God
Save de South, hino dos Estados Confederados, e nervoso pelo desperdício de
uma boa bebida ruim, Sam Davis atirou com vontade contra seus inimigos acabando
por expulsá-los de seu quintal.
- É meió chisparem daqui, seus galinhas! – gritou Sam
rindo a vontade. – Agora vem cá muié que nós vamos enchê o barde até distripá o
mico!
Assim amanheceu mais um dia em Thombstone. A cidade
era dividida em três, o que poderia parecer um absurdo para um observador de
fora, pois tinha apenas uma rua de terra, com pouco mais de quinhentos metros
de comprimento. Na parte de baixo da rua ficava a propriedade dos Davis e seus
aliados. No meio estavam os Braxters e os Rojos, os mais ricos, ficavam no alto
da rua. A cidade, que parecia não ter nada, tinha o essencial para as
necessidades daqueles homens e mulheres esquecidos por Deus: uma prisão, com
uma única cela, onde normalmente ficavam trancafiados forasteiros – bandidos ou
não – e onde também estava o xerife, escolhido entre os mais bêbados e gordos
da cidade. Havia também a Igreja e o cemitério, onde trabalhava o homem mais
feliz da cidade: o fabricante de caixões. A Igreja era o lugar neutro, assim
como o saloon, mas o primeiro ninguém gostava de frequentar - apesar de isso
ocorrer com frequência em razão das frequentes missas de sétimo dia e velórios
- e o segundo era lugar certo onde encontrar quem quisesse, todas as noites.
O fato do saloon ser respeitado como terreno neutro
não significava ausência de violência, apesar de raramente alguém morrer lá
dentro. No saloon você não era respeitado se não saísse de lá completamente
bêbado e se não tivesse arrumado uma confusão qualquer.
E assim cresceu o pequeno Jack. Numa família violenta,
de uma cidade violenta, numa época violenta. Sua mãe desejava no fundo de seu
coração caipira que seu filho pudesse crescer num lugar melhor, mas não fizera
muito em prol disso. Jack cresceu aprendendo com a sua família e a sua cidade,
tudo do mal e do pior.
(...)
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